Ana Mascarenhas esteve no dia 10 de Maio de 2012 no programa de Jaime Ferreira de Carvalho, Artes e Cultura da RDP Internacional para falar sobre os seus livros e a cultura em geral...
Entre outros textos, leu um texto do seu segundo Livro Em Carne Viva dedicado às Vozes da Rádio
De novo a história do carro.
De
novo a inspiração na condução.
Se pudesse escrever tudo o que pela minha mente passa enquanto conduzo, não haveria papel nem tinta que chegasse para preencher o vazio que sinto, por nada poder escrever e apenas conduzir. E enquanto conduzo reparo que novo hábito se instala em mim, será da idade ou será mesmo assim?
Agora, as músicas que outrora aprendi a escutar, escuto-as igualmente, mas com pausa de rádio na mente. Sim, mas não é uma pausa qualquer, é um intervalo na música para dar lugar à voz.
Oiço e imagino, sinto também, que são vozes de rádio, vozes sem cara mas com corpo, vozes com palavras e posturas próprias, de modo a deixar correr a imaginação, como será aquela criatura, como será aquela viva alma que dá vida à rádio de corpo sem corpo.
Ao ouvir vozes bonitas, gargalhadas contentes, sorrisos com vontade e alegrias partilhadas, penso para mim: “utópico dizer, mas como se consegue através de uma voz, transmitir a visão dos gestos que esse corpo de voz se faz sentir e ver também?”
Consigo ver a voz e não apenas ouvi-la, consigo senti-la e não apenas escutá-la, fantástico mesmo. Mas eu, eu não tenho uma voz bonita, não tenho a sapiência dos convidados nem tão pouco sou conhecida pelo que apenas sou, porque haveria eu de ser alguém, ou igualmente ter voz que ouve, sente e vê?
Imagino a que cara pertence determinada voz sem rosto, imagino o que poderia aprender com ilustres convidados que vivem da erudição de uma vida intensa em estudo e, igualmente em sabedoria.
A conclusão é aterradora, pois não tenho uma voz marcada, nem uma presença firme, quanto mais a sabedoria de alguém que sabe ser a cultura e a perícia, de uma vida de esforço e determinação, a mais que não seja, por uma luta, uma causa, um motivo e até uma vontade.
Mas de facto apenas oiço e imagino.
Imagino-me ser a convidada e porque não a jornalista, quem sabe a locutora e também a escritora, mas imagino sempre vozes com garra, vozes com brilho e vozes com vontade de se fazerem ouvir.
E no entanto ao imaginar que rosto terá aquela voz, que face terá aquele corpo, apenas constato que novo hábito se instala, por querer ouvir e imaginar, vozes que dão vida à voz e até gestos que dão existência à alma. Pois, apenas a voz que oiço me faz imaginar que gestos estarão a fazer enquanto falam e trabalham?
Oiço
e escuto, divago e penso, oiço e ausculto e novamente vagueio e devaneio.
São lindas vozes de corpo ausente, são fenómenos com voz e com som presente, são vozes com cheiro e tradição, são toques de vozes que nos fazem fantasiar.
E eu aqui a escrever e a esforçar-me para me lembrar, o que tanto queria rabiscar, o que tanto me inspirou numa tarde de rádio com som de vozes e sem som de música.
Afinal, escrevo apenas para recordar, para me acalmar e nada consigo nesta vida fazer, a não ser escrever com som de teclas e devaneios sem voz.
Pois, afinal tudo esqueci e nada escrevi.
Que voz tenho eu para fazer nascer algo que arrepie e denuncie?
São lindas vozes de corpo ausente, são fenómenos com voz e com som presente, são vozes com cheiro e tradição, são toques de vozes que nos fazem fantasiar.
E eu aqui a escrever e a esforçar-me para me lembrar, o que tanto queria rabiscar, o que tanto me inspirou numa tarde de rádio com som de vozes e sem som de música.
Afinal, escrevo apenas para recordar, para me acalmar e nada consigo nesta vida fazer, a não ser escrever com som de teclas e devaneios sem voz.
Pois, afinal tudo esqueci e nada escrevi.
Que voz tenho eu para fazer nascer algo que arrepie e denuncie?
Que
voz tenho eu para agarrar com vontade e nascer sem crueldade?
Que
voz tenho eu na alma e no corpo, na vida e na mente?
Diz-me apenas se me faço ouvir?
Diz-me apenas se me faço ouvir?
Diz-me
apenas se me faço sentir?
Mas diz-me…
Diz-me
que, mesmo calada e sossegada me ouves.
Assim, serei a voz de alguém, saberei ter voz e também ser voz, que se faz ouvir com palavras escritas e nunca faladas, mas que se faz entender e até perceber, que se faz sentir e até amar, porque afinal, também escrevo e o corpo não me vêem, de igual modo que escuto uma voz com corpo, mas não o vislumbro por ser voz de rádio.
Se assim é, serei sempre a tua voz, não é bonita nem firme, mas é e será sempre uma voz, a voz da luta e da conquista, a voz da dor e da ignorância, mas será sempre uma voz.
Uma voz com corpo e presença sem rádio.
Ana Mascarenhas in Em Carne Viva