Prefácio "Vazios da Escrita" por Miguel Real


ANA MASCARENHAS

O DESCONCERTO DO MUNDO

A escrita de Fragmentos da Alma (título inicial deste livro, posteriormente designado por Vazios da Escrita) não obedece nem à visão clássica do romance e do conto nem à da poesia. Afirma-se como uma narrativa de tipo novo, estranha, onde perpassa tanto a iluminação poética (“fragmentos”) quanto a narração argumentativa, ambas embaladas pelo sentimento (“da alma”). É, assim, um texto para ser lido com lentidão, porventura desordenadamente, ao sabor do imprevisto, furtando em cada página um pensamento, uma experiência, uma história, um verso que nos alumie o dia. Revolta feminina, sofrimento humano, algum cepticismo sobre a real valia da humanidade, pouca alegria, nenhum júbilo – eis o trem de que se compõe esta centena e meia de páginas, rebaptizadas com propriedade de Vazios da Escrita.

Vazios da Escrita porque tudo parece desavindo na mente da narradora, ou “desconcertado”, como diria o nosso épico, expressão da desarmonia flagrante entre desejo, vida e mundo. Assim o vive a narradora, assim o transmite nesta obra sofrida, assim o escreve desconexamente, criando um estilo disperso e fragmentário, que força o leitor a participar, comovendo-se, partilhando de idêntica tristeza ou alegria. É um estilo desprovido da aplicação das regras clássicas de ordem, proporção e harmonia, subvertendo em absoluto a tradicional arte da escrita literária. Em seu lugar, Ana Mascarenhas capta e transmite o grande vazio da vida, o aparente absurdo subversor de se acordar todas as manhãs para não se ser feliz. Desconcertada a alma, desconcertado o livro, desconcertado o estilo, dividido entre a imperfeição do mundo e a perfeição da vida plena (ou felicidade). Assim, em Ana Mascarenhas, o texto oferece-nos, “Em Carne Viva” (título de um seu livro anterior), uma consciência poética estilhaçada, pulverizada, dividida em fragmentos independentes, alimentados por um conteúdo de fogo e revolta.

Neste sentido, perpassa no livro de Ana Mascarenhas um profundo sentimento trágico, uma ausência de unidade harmoniosa para a existência, tudo se torna deserto, desconcertante, e o deserto é imenso, como escreveu Fernando Pessoa, suga-nos encantadamente a alma, arrastando-nos para o fundo delirante da escrita, para o vazio. A escrita de Ana Mascarenhas tem o condão de apagar a luz, o som e a cor das feiras populares e dos ecrãs de televisão do mundo, de criar um vazio à volta do leitor, donde só com esforço se sai, limpando o suor da alma repartida em fragmentos, uma espécie de poço sem fundo desconstrutivista, onde se perde a inocência. É bom que assim seja, significa que a sua escrita nos toca, nos choca, nos faz gritar de revolta (não de desespero), tentando abrir uma nova estrada para os homens, não a da felicidade dos romances cor-de-rosa, não a da harmonia paradisíaca oferecida pelas agências Abreu do mundo inteiro, apenas aquela em que possa haver a hipótese de, ao despertarmos de manhã, não tenhamos a certeza de que vamos ser infelizes esse dia, talvez também possamos ser felizes, não porque existem passarinhos e o céu resplandece de azul, mas porque existem formas de concerto entre os homens, que quebram o vazio da escrita.

Parabéns, Ana, pelo texto sofrido. Afinal, não tanto vazio como o título sugere.


Miguel Real,
Azenhas do mar, Sintra,
8 de Março de 2011.