Discurso do Lançamento do Livro "Silêncio Denunciado"



Boa tarde!

Em primeiro lugar quero agradecer a Vossa ilustre presença. Agradecer, igualmente, ao meu editor e amigo, Diego e, como não podia deixar de ser, agradecer ao Miguel Real por ter aceitado apresentar o livro Silêncio Denunciado. Agradeço, também, ao Hotel Real Palácio pela cedência deste maravilhoso espaço que nos permite estar hoje, aqui. Por isso, Obrigada!

O livro Silêncio Denunciado é um romance, mas, e, como tenho referido várias vezes, não é um romance cor-de-rosa, aquele que nos faz sonhar, aquele que nos faz brilhar, aquele que nos atrai pelos seus finais felizes, não! Antes é um romance interventivo. Um romance que nos faz chorar ao invés de sorrir, que nos faz pensar e também refletir.

É um livro que revela ou melhor, denuncia práticas abusivas de várias sociedades, de vários países, de várias culturas, de várias gentes, de várias religiões, crenças e idades, enfim, é um livro que denuncia um mundo que se diz globalizado. Pergunto: Globalizado por quem? Pelo quê? De que forma? À custa do quê ou à custa de quem? Não sei! E, por não saber, achei que tinha o dever de acusar revelando vários males que se intitulam em determinadas sociedades de culturais, outras de religiosas, outras ainda apelidam-se assim por questões puramente económicas, encobrindo a realidade, a natureza humana, por isso, denuncio de forma acutilante, se assim o entenderem, o que acho deve ser, também, uma forma de literatura, aquela que intervém e que chama à razão. 

Vou por isso, começar por Vos ler algo que em tempos comecei a escrever, mas, apenas terminei agora, há poucos dias, escrevi o que me impressionou, o que ainda me afeta e perturba bastante. Um texto que reflete um pouco o teor do livro Silêncio Denunciado mas, na versão masculina. 


Nasci em Londres e tenho apenas oito anos.
Hoje fui com o meu pai ver uma luta de cães.
Não sei qual o seu entusiasmo, o que ele sente ao ver dois animais a debaterem-se pela vida. Só sei que sinto o cheiro da dor, o odor do sangue… apetece-me vomitar e, por momentos julguei que o vómito ganhara o seu dia, mas, ainda fui a tempo de travá-lo.
O meu pai gritava euforicamente como se uma luta entre dois indefesos animais fosse a única razão da sua alegria.
Queria à viva força compreender este mundo de atropelos em que os adultos instigam a violência e fomentam gratuitamente esse estado de espírito, como se fosse um alimento da Alma, como se fosse o saciar da fome.
Juro! Juro que tentei percebê-lo, a ele e a tantos outros que, pelos mesmos ou semelhantes motivos ali estavam. Infelizmente, não compreendi. Ainda me questionei se não era a minha tenra idade que me limitava de algum modo essa total compreensão sobre os adultos, mas, se fosse, então, quereria ser eternamente criança, pois, esse mundo assusta-me, aterroriza-me.
Acordo destes pensamentos quando oiço grunhidos e vejo os animais a sangrarem e a agredirem-se brutalmente instigados pelos seus próprios donos. Sei que apenas um será vencedor e choro. Choro por sentir não só as dores de um, mas as dores de ambos. Sinto a minha pele a arrepiar-se, dói-me o corpo, mas, acima de tudo, dói-me a Alma.
Sou filho de gente má, serei eu mais tarde, igualmente, mau? Fecho os meus olhos! Quero pelo menos acabar com um dos meus cinco sentidos, a visão. Assim, pelo menos, apenas oiço e sinto através do cheiro e da dor, tateio o sangue que me salpica para a boca, colocando apenas a visão como sentido ausente no meio de tanta crueldade e confusão.
O jogo acabou! Não sei quem ganhou ou perdeu!
Apenas sei que uma luta não só alimentou os bolsos desta gente como, também, alimentou as suas vergonhosas Almas, as suas tristes vidas.
Chegámos a casa e nada disse durante a viagem de regresso. O meu pai falava alto, gargalhava e partilhava comigo alguns momentos sobre a luta de cães através de pequenos comentários. Queria fazer de mim um homem, dizia ele. Estes eventos fariam de mim um homem, não um maricas, estas lutas que o entretinha nas horas vagas seriam, também elas, o meu entretenimento, dizia o meu pai, uma vez mais.
Eu calado e amedrontado ouvia sem nada manifestar. No fundo era o meu pai, aquele que me veste, alimenta e me dá um teto, logo, o meu dever será respeitá-lo não só enquanto pai, mas, também, por ser mais velho. É minha obrigação agradecer a vida que me deu, a existência que me dá.
Adormeço a pensar neste dia, naquelas horas que deveriam parecer a eternidade para aqueles animais e, sonho…


Estou no meio de um ringue com um outro rapaz. Parecia ter a mesma idade que eu, a estatura era semelhante e, curiosamente, estava também ele vestido com uns calções, muito parecidos com os meus. Olho à minha volta e vejo no rapaz o meu espelho. Assustado mas sem o querer demonstrar, colocava a sua agressividade no centro da sua defesa. Não conseguia perceber porque nos encontrávamos ali, apenas me lembrava da luta de cães, dos aplausos dos adultos, do dinheiro a circular, das gargalhadas, dos gritos e nomes… e, por momentos, revejo-me na pele desses pobres e indefesos animais.
O meu pai do outro lado do ringue olhava-me instigando-me à luta como forma de diversão. De repente senti um empurrão. Era o meu espelho, o outro rapaz que do nada iniciou uma luta comigo. E, eu sem saber porquê acatei os seus empurrões, os seus braços de ferro, o seu peso sobre o meu corpo. Queria livrar-me dele, queria perceber o porquê desta gratuita agressão, mas não consegui. Encolhi-me e tapei os ouvidos para não ouvir os gritos, os aplausos, a alegria e a euforia que se soltavam dos adultos. Encolhi-me mais ainda para não sentir a dor dos murros que iam de encontro a mim. Chorava, queria sair dali. O ar começara a faltar-me, os porquês atropelavam-se sem resposta e o meu pai gritava comigo sem eu saber, uma vez mais, porquê.




 Dou um pulo da cama e acordo suado, imundo em urina. Acordei de um sonho da noite porque o vivi de dia, foi o reflexo do meu dia anterior. Tentei novamente adormecer, mas não consegui.
A manhã acordou e com ela o meu pai também. Disse-me que hoje o dia seria diferente, único e inesquecível. Disse-me para vestir uns calções e besuntar o corpo com óleo. Não entendi o porquê deste pedido, mas sem discussão acatei curioso. Sentámo-nos à mesa e começámos a comer um verdadeiro pequeno-almoço britânico. Precisava de forças, dizia o meu pai. Terminámos e saímos. Fomos diretos para o carro e partimos. Não sabia para onde o meu pai me levava, talvez, novamente para aquele celeiro antigo e com cheiro a morte, onde estivemos ontem para assistir a mais uma luta de cães. Se calhar desta vez seria de galos. Sim, é verdade! O meu pai também já me levou a uma, e é muito semelhante, cruel e bárbaro.
Chegámos! Chegámos, efetivamente, a um celeiro, aparentemente abandonado… saímos do carro e lá fomos os dois. Entrámos e vi algo muito semelhante ao dia anterior. Muitos homens, muito dinheiro a circular, muitos berros e aplausos, no entanto, notei algo de diferente, havia muitas crianças, mais do que o habitual, havia também muitas mulheres, talvez as mães daquelas crianças. Quando nos aproximámos do ringue, fiquei estupefacto. Vi duas crianças de idades semelhantes à minha a lutarem feitos animais. Uma luta entre dois pequenos seres racionais e, estimulada pelos grandes animais, também eles, racionais… dizem eles…
O meu pai chama-me e diz-me: Vai! É a tua vez! Dá-lhe com força. Besuntaste-te bem, certo? Assim ele terá mais dificuldade em agarrar-te. Apostei tudo em ti, não me desiludas. Sairás daqui um homem e, com o dinheiro que aqui ganharmos poderás comprar tudo o que quiseres.
Estou sem palavras! O meu pai! O meu próprio pai! Como é possível?!
Agora tudo está claro para mim! O meu sonho não foi em vão! O meu pai acordou esta manhã e disse-me que este seria um dia diferente. Efetivamente é um dia diferente. É o dia em que percebi que o meu progenitor não é mais do que isso, apenas um progenitor. Efetivamente percebi que devo respeitar o meu pai, mas, para eu o respeitar ele deve, igualmente, saber respeitar-se e, para isso deverá respeitar-me, não só como filho, mas também como criança.
Decidi colocar um ponto final àquela ridícula situação. Entrei para o ringue e calmamente dirigi-me para o meu suposto adversário. Pisquei-lhe o olho e ele rapidamente percebeu onde queria chegar. Demos um aperto de mão e virámos as costas aos adultos. Saímos do ringue e dirigimo-nos para fora do celeiro. Lá fora, respirámos o ar que nos alimenta e sentimos a liberdade de sermos crianças.
Decidimos não lutar para alimentar o ego daqueles que se intitulam nossos pais, mas apenas são monstros vestidos de pais. O ser humano ultrapassou todos os limites do bom senso e da razoabilidade. Nós seremos os adultos de amanhã, logo, jamais permitiremos que os adultos de hoje façam de nós os monstros que eles hoje são.
Corremos e corremos. Corremos até mais não. Sempre, sem parar, até as forças nos faltarem. E, quando parámos decidimos os dois ir viver para bem longe dos nossos pais. Assim foi. Cedo crescemos, sem estudos ou mordomias, mas humanos nos tornámos, porque o pão nos faltou, a roupa também, o teto foi o céu e a cama foi a terra, mas a educação que a mãe natureza nos deu foi melhor que a que os nossos pais nos queriam dar.
Decidimos, assim, não ser o alimento dos seus egos e muito menos dos seus bolsos, mas, efetivamente, decidimos de igual modo, tornarmo-nos realmente ao que apelidamos de… humanos.

Ana Mascarenhas
02 Mai 12






 Nota:
Texto baseado num documentário que vi na televisão no dia 23 de Setembro de 2011. Um documentário que revelou, de facto, uma história passada em Inglaterra exibindo uma luta entre crianças fomentada pelos próprios pais. Foi nesse mesmo dia que comecei a escrever este texto, mas, e, como estava a escrever, igualmente, o livro Silêncio Denunciado, acabei por não o terminar. Terminei hoje, dia 02 de Maio. Agora que o livro vai ser lançado, a minha mente decidiu por breves momentos regressar às incongruências da vida, esta é mais uma, entre tantas… infelizmente… 



E, aqui está! Um texto que, como disse, é o reflexo do livro Silêncio Denunciado mas, na sua versão masculina. Espero que Vos tenha impressionado tanto quanto a mim. Que Vos tenha perturbado não só porque é real, acontece aos nossos olhos e ninguém faz nada, mas, porque, também, tem-se o desplante de aplaudir este tipo de práticas numa sociedade que se diz evoluída, afinal, Inglaterra não é tão longe assim. E, como esta, existem outras, muitas outras que todos sabem, veem, ouvem, mas… pergunto: Será que sentem?! Deixo a pergunta no ar… cada um responderá por si.

A todos os que aqui estão e, àqueles que gostariam de estar mas por razões várias não puderam, desejo um grande Bem Haja!

Antes de terminar gostaria apenas de fazer o meu último reconhecimento.
O meu agradecimento à minha família e ao meu falecido pai.
Obrigada!

Ana Mascarenhas