Boa tarde!
Em primeiro lugar quero agradecer a
Vossa ilustre presença. Agradecer, igualmente, ao meu editor e amigo, Diego e,
como não podia deixar de ser, agradecer ao Miguel Real por ter aceitado
apresentar o livro Silêncio Denunciado.
Agradeço, também, ao Hotel Real Palácio
pela cedência deste maravilhoso espaço que nos permite estar hoje, aqui. Por
isso, Obrigada!
O livro Silêncio Denunciado é um romance, mas, e, como tenho referido
várias vezes, não é um romance cor-de-rosa, aquele que nos faz sonhar, aquele
que nos faz brilhar, aquele que nos atrai pelos seus finais felizes, não! Antes
é um romance interventivo. Um romance que nos faz chorar ao invés de sorrir,
que nos faz pensar e também refletir.
É um livro que revela ou melhor,
denuncia práticas abusivas de várias sociedades, de vários países, de várias
culturas, de várias gentes, de várias religiões, crenças e idades, enfim, é um
livro que denuncia um mundo que se diz globalizado. Pergunto: Globalizado por
quem? Pelo quê? De que forma? À custa do quê ou à custa de quem? Não sei! E,
por não saber, achei que tinha o dever de acusar revelando vários males que se
intitulam em determinadas sociedades de culturais, outras de religiosas, outras
ainda apelidam-se assim por questões puramente económicas, encobrindo a realidade,
a natureza humana, por isso, denuncio de forma acutilante, se assim o
entenderem, o que acho deve ser, também, uma forma de literatura, aquela que
intervém e que chama à razão.
Vou por isso, começar por Vos ler algo que
em tempos comecei a escrever, mas, apenas terminei agora, há poucos dias,
escrevi o que me impressionou, o que ainda me afeta e perturba bastante. Um
texto que reflete um pouco o teor do livro Silêncio
Denunciado mas, na versão masculina.
Hoje
fui com o meu pai ver uma luta de cães.
Não
sei qual o seu entusiasmo, o que ele sente ao ver dois animais a debaterem-se
pela vida. Só sei que sinto o cheiro da dor, o odor do sangue… apetece-me
vomitar e, por momentos julguei que o vómito ganhara o seu dia, mas, ainda fui
a tempo de travá-lo.
O
meu pai gritava euforicamente como se uma luta entre dois indefesos animais
fosse a única razão da sua alegria.
Queria
à viva força compreender este mundo de atropelos em que os adultos instigam a
violência e fomentam gratuitamente esse estado de espírito, como se fosse um
alimento da Alma, como se fosse o saciar da fome.
Juro!
Juro que tentei percebê-lo, a ele e a tantos outros que, pelos mesmos ou
semelhantes motivos ali estavam. Infelizmente, não compreendi. Ainda me
questionei se não era a minha tenra idade que me limitava de algum modo essa
total compreensão sobre os adultos, mas, se fosse, então, quereria ser
eternamente criança, pois, esse mundo assusta-me, aterroriza-me.
Acordo
destes pensamentos quando oiço grunhidos e vejo os animais a sangrarem e a
agredirem-se brutalmente instigados pelos seus próprios donos. Sei que apenas
um será vencedor e choro. Choro por sentir não só as dores de um, mas as dores
de ambos. Sinto a minha pele a arrepiar-se, dói-me o corpo, mas, acima de tudo,
dói-me a Alma.
Sou
filho de gente má, serei eu mais tarde, igualmente, mau? Fecho os meus olhos!
Quero pelo menos acabar com um dos meus cinco sentidos, a visão. Assim, pelo
menos, apenas oiço e sinto através do cheiro e da dor, tateio o sangue que me
salpica para a boca, colocando apenas a visão como sentido ausente no meio de
tanta crueldade e confusão.
O
jogo acabou! Não sei quem ganhou ou perdeu!
Apenas
sei que uma luta não só alimentou os bolsos desta gente como, também, alimentou
as suas vergonhosas Almas, as suas tristes vidas.
Chegámos
a casa e nada disse durante a viagem de regresso. O meu pai falava alto,
gargalhava e partilhava comigo alguns momentos sobre a luta de cães através de
pequenos comentários. Queria fazer de mim um homem, dizia ele. Estes eventos
fariam de mim um homem, não um maricas, estas lutas que o entretinha nas horas
vagas seriam, também elas, o meu entretenimento, dizia o meu pai, uma vez mais.
Eu
calado e amedrontado ouvia sem nada manifestar. No fundo era o meu pai, aquele
que me veste, alimenta e me dá um teto, logo, o meu dever será respeitá-lo não
só enquanto pai, mas, também, por ser mais velho. É minha obrigação agradecer a
vida que me deu, a existência que me dá.
Adormeço
a pensar neste dia, naquelas horas que deveriam parecer a eternidade para
aqueles animais e, sonho…
Estou no meio de
um ringue com um outro rapaz. Parecia ter a mesma idade que eu, a estatura era
semelhante e, curiosamente, estava também ele vestido com uns calções, muito
parecidos com os meus. Olho à minha volta e vejo no rapaz o meu espelho.
Assustado mas sem o querer demonstrar, colocava a sua agressividade no centro
da sua defesa. Não conseguia perceber porque nos encontrávamos ali, apenas me
lembrava da luta de cães, dos aplausos dos adultos, do dinheiro a circular, das
gargalhadas, dos gritos e nomes… e, por momentos, revejo-me na pele desses
pobres e indefesos animais.
O meu pai do
outro lado do ringue olhava-me instigando-me à luta como forma de diversão. De
repente senti um empurrão. Era o meu espelho, o outro rapaz que do nada iniciou
uma luta comigo. E, eu sem saber porquê acatei os seus empurrões, os seus
braços de ferro, o seu peso sobre o meu corpo. Queria livrar-me dele, queria
perceber o porquê desta gratuita agressão, mas não consegui. Encolhi-me e tapei
os ouvidos para não ouvir os gritos, os aplausos, a alegria e a euforia que se
soltavam dos adultos. Encolhi-me mais ainda para não sentir a dor dos murros
que iam de encontro a mim. Chorava, queria sair dali. O ar começara a
faltar-me, os porquês atropelavam-se sem resposta e o meu pai gritava comigo
sem eu saber, uma vez mais, porquê.
Dou um pulo da cama e acordo suado, imundo em urina. Acordei de um sonho da noite porque o vivi de dia, foi o reflexo do meu dia anterior. Tentei novamente adormecer, mas não consegui.
Dou um pulo da cama e acordo suado, imundo em urina. Acordei de um sonho da noite porque o vivi de dia, foi o reflexo do meu dia anterior. Tentei novamente adormecer, mas não consegui.
A
manhã acordou e com ela o meu pai também. Disse-me que hoje o dia seria
diferente, único e inesquecível. Disse-me para vestir uns calções e besuntar o
corpo com óleo. Não entendi o porquê deste pedido, mas sem discussão acatei
curioso. Sentámo-nos à mesa e começámos a comer um verdadeiro pequeno-almoço
britânico. Precisava de forças, dizia o meu pai. Terminámos e saímos. Fomos
diretos para o carro e partimos. Não sabia para onde o meu pai me levava,
talvez, novamente para aquele celeiro antigo e com cheiro a morte, onde
estivemos ontem para assistir a mais uma luta de cães. Se calhar desta vez
seria de galos. Sim, é verdade! O meu pai também já me levou a uma, e é muito semelhante,
cruel e bárbaro.
Chegámos!
Chegámos, efetivamente, a um celeiro, aparentemente abandonado… saímos do carro
e lá fomos os dois. Entrámos e vi algo muito semelhante ao dia anterior. Muitos
homens, muito dinheiro a circular, muitos berros e aplausos, no entanto, notei
algo de diferente, havia muitas crianças, mais do que o habitual, havia também
muitas mulheres, talvez as mães daquelas crianças. Quando nos aproximámos do
ringue, fiquei estupefacto. Vi duas crianças de idades semelhantes à minha a lutarem
feitos animais. Uma luta entre dois pequenos seres racionais e, estimulada
pelos grandes animais, também eles, racionais… dizem eles…
O
meu pai chama-me e diz-me: Vai! É a tua vez! Dá-lhe com força. Besuntaste-te
bem, certo? Assim ele terá mais dificuldade em agarrar-te. Apostei tudo em ti,
não me desiludas. Sairás daqui um homem e, com o dinheiro que aqui ganharmos
poderás comprar tudo o que quiseres.
Estou
sem palavras! O meu pai! O meu próprio pai! Como é possível?!
Agora
tudo está claro para mim! O meu sonho não foi em vão! O meu pai acordou esta
manhã e disse-me que este seria um dia diferente. Efetivamente é um dia
diferente. É o dia em que percebi que o meu progenitor não é mais do que isso,
apenas um progenitor. Efetivamente percebi que devo respeitar o meu pai, mas,
para eu o respeitar ele deve, igualmente, saber respeitar-se e, para isso
deverá respeitar-me, não só como filho, mas também como criança.
Decidi
colocar um ponto final àquela ridícula situação. Entrei para o ringue e
calmamente dirigi-me para o meu suposto adversário. Pisquei-lhe o olho e ele
rapidamente percebeu onde queria chegar. Demos um aperto de mão e virámos as
costas aos adultos. Saímos do ringue e dirigimo-nos para fora do celeiro. Lá
fora, respirámos o ar que nos alimenta e sentimos a liberdade de sermos
crianças.
Decidimos
não lutar para alimentar o ego daqueles que se intitulam nossos pais, mas
apenas são monstros vestidos de pais. O ser humano ultrapassou todos os limites
do bom senso e da razoabilidade. Nós seremos os adultos de amanhã, logo, jamais
permitiremos que os adultos de hoje façam de nós os monstros que eles hoje são.
Corremos
e corremos. Corremos até mais não. Sempre, sem parar, até as forças nos
faltarem. E, quando parámos decidimos os dois ir viver para bem longe dos
nossos pais. Assim foi. Cedo crescemos, sem estudos ou mordomias, mas humanos
nos tornámos, porque o pão nos faltou, a roupa também, o teto foi o céu e a
cama foi a terra, mas a educação que a mãe natureza nos deu foi melhor que a
que os nossos pais nos queriam dar.
Decidimos,
assim, não ser o alimento dos seus egos e muito menos dos seus bolsos, mas,
efetivamente, decidimos de igual modo, tornarmo-nos realmente ao que apelidamos
de… humanos.
Ana Mascarenhas
Texto baseado num
documentário que vi na televisão no dia 23 de Setembro de 2011. Um documentário
que revelou, de facto, uma história passada em Inglaterra exibindo uma luta
entre crianças fomentada pelos próprios pais. Foi nesse mesmo dia que comecei a
escrever este texto, mas, e, como estava a escrever, igualmente, o livro
Silêncio Denunciado, acabei por não o terminar. Terminei hoje, dia 02 de Maio.
Agora que o livro vai ser lançado, a minha mente decidiu por breves momentos
regressar às incongruências da vida, esta é mais uma, entre tantas…
infelizmente…
E, aqui está! Um texto que, como disse,
é o reflexo do livro Silêncio Denunciado
mas, na sua versão masculina. Espero que Vos tenha impressionado tanto quanto a
mim. Que Vos tenha perturbado não só porque é real, acontece aos nossos olhos e
ninguém faz nada, mas, porque, também, tem-se o desplante de aplaudir este tipo
de práticas numa sociedade que se diz evoluída, afinal, Inglaterra não é tão
longe assim. E, como esta, existem outras, muitas outras que todos sabem, veem,
ouvem, mas… pergunto: Será que sentem?! Deixo a pergunta no ar… cada um
responderá por si.
A todos os que aqui estão e, àqueles que
gostariam de estar mas por razões várias não puderam, desejo um grande Bem
Haja!
Antes de terminar gostaria apenas de
fazer o meu último reconhecimento.
O meu agradecimento à minha família e ao
meu falecido pai.
Obrigada!
Ana Mascarenhas